São Mateus, Bahia, Japão. No cancioneiro de Rodrigo Campos, a geografia cumpre um outro papel, como uma espécie de mapa imaginário que dá sempre no mesmo lugar, com variações de camadas, formas e cores. Rodrigo nos leva à uma nova terra, deslocada do tempo e espaço sem recorrer a elementos documentais nem à vivência geográfica para construir sua obra, ele segue um mapa abstrato e subjetivo que investiga impressões e memórias não vividas.
Com esse exercício de se afastar para se aproximar, Rodrigo começa a desconstruir a própria noção espacial. Depois de reinventar pra si a sua própria Bahia, o compositor nos leva em seu novo disco, Conversas com Toshiro (2015), para um Japão que também não é assim tão longe.
Qual é o Japão de Rodrigo? O Japão da imagem. O Japão cinematográfico aos olhos ocidentais.
Ao inventar novamente uma geografia pessoal, nos convencemos que Rodrigo Campos é um nômade em plena São Paulo, cidade cosmopolita que pode ser todos os lugares ou lugar nenhum. Rodrigo habita apenas seu próprio corpo e mapeia o mundo a partir das experiências humanas de suas personagens.
— Texto editado a partir do release de Kiko Dinucci
• Pela primeira vez lançamos um disco duplo. Veio junto a necessidade de um novo modelo de capa. Assim criamos um modelo gatefold que, ao abrir, apresenta os dois discos num bolso só.
• Empastamento de papeis especiais, vermelho e azul tingidos na massa;
• Serigrafia frente/verso de 2 cores: preto e dourado. Necessitou 10 telas diferentes.
• Faca especial de tipo “Die Cut” permitindo um jogo gráfico entre a capa, as capinhas do disco e o fundo;
• Numeradas a mão.
_Disco I
A1. Takeshi e Asayo
A2. Wong Kar-Wai
A3. Katsumi
A4. Dois Sozinhos
A5. Funatsu
_Disco II
C1. Abraço de Ozu
C2. Chihiro
C3. Toshiro Reverso
C4. Mar do Japão
D1. Toshiro Vingança
D2. Paisagem na Neblina
D3. Velho Amarelo
D4. Dono da Bateria
Todas as músicas de autoria do Rodrigo Campos, exeto Dono da Bateria, em parceria com Nuno Ramos
Produção musical: Rodrigo Campos
Direção artística: Romulo Fróes
Arranjos em Chihiro, Dois sozinhos, Funatsu, Katsumi, Mar do Japão, Dono da Bateria, Paisagem na Neblina, Takeshi e Asayo e Wong Kar Wai:
Rodrigo Campos, Marcelo Cabral, Curumin, Romulo Fróes, Juçara Marçal, Ná Ozzetti, Thiago França e Dustan Gallas
Arranjos e regência em Abraço de Ozu, Toshiro Reverso, Toshiro Vingança e Velho Amarelo:
Marcos Paiva
Gravação de Chihiro, Dois sozinhos, Funatsu, Katsumi, Mar do Japão, Dono da Bateria, Paisagem na Neblina, Takeshi e Asayo e Wong Kar Wai:
Carlos “Cacá” Lima, no estúdio YB Music.
Assistência de gravação:
Pedro Vinci no estúdio YB Music / Alexandre Fontanetti no estúdio Space Blues.
Gravação de Abraço de Ozu, Toshiro Reverso, Toshiro Vingança e Velho Amarelo:
Gustavo Lenza, no estúdio Space Blues.
Engenheiro Assistente: Alexandre Fontanetti
Gravação e orientação de vozes (Rodrigo Campos): Carlos “Cacá” Lima, no estúdio YB Music
Edições gerais e gravação de percussão (Velho amarelo): Daniel Bozzio, no estúdio Fine Tuning
Mixagem: Gustavo Lenza, no estúdio La Nave
Masterização: Felipe Tichauer, no Redtraxx Studio
Arte gráfica: Rodrigo Sommer
Produção Gráfica: Frederic Thiphagne
São Mateus, Bahia, Japão. No cancioneiro de Rodrigo Campos, a geografia cumpre um outro papel, como uma espécie de mapa imaginário que dá sempre no mesmo lugar, com variações de camadas, formas e cores. Esse lugar comum poderia ser o bairro São Mateus, na periferia de São Paulo, como ouvimos em seu primeiro álbum São Mateus Não é Um Lugar Assim Tão Longe (2009), no entanto, em seu segundo álbum, Bahia Fantástica (2012), ficamos em dúvida quanto a uma residência fixa, Rodrigo nos leva à uma nova terra, deslocada do tempo e espaço. Ao contrário de seu primeiro álbum, o próprio quintal deixa de ser o tema central e nos deparamos com uma Bahia imagética, que visita de certa maneira Carybé, Caymmi e Jorge Amado, autores que também inventaram as suas próprias Bahias, mas diferente dos artistas baianos, Rodrigo não recorre a elementos documentais nem à vivência geográfica para construir sua obra, ele segue um mapa abstrato e subjetivo que investiga impressões e memórias não vividas.
Desde o primeiro disco em que o autor afirma que São Mateus não é um lugar assim tão longe, começa a trabalhar essa nova noção de espaço. Rodrigo gravou o álbum enquanto já não morava mais no bairro suburbano, sua São Mateus é nostálgica e aparece como um acerto de contas, como o estancar do sangue ou o cicatrizar das feridas. São Mateus passou a não ser tão longe assim porque morava dentro de seu corpo. Seu comportamento, seus gestos, sua ética, estavam estreitamente ligados ao seu bairro. E pra quem mora em São Mateus, longe é o resto do mundo, não São Mateus. Com esse exercício de se afastar para se aproximar, Rodrigo começa a desconstruir a própria noção espacial. Depois de reinventar pra si a sua própria Bahia, o compositor nos leva em seu novo disco, Conversas com Toshiro (2015), para um Japão que também não é assim tão longe.
Qual é o Japão de Rodrigo? O Japão da imagem. O Japão cinematográfico aos olhos ocidentais. Agora, personagens como Ana, Andresa, Dininho Cruz, Jardir e o Zé dão lugar lugar a Ozu, Takeshi, Wong Kar- Wai, Toshiro, Chihiro, nomes que nos levam aos sígnos do cinema asiáticos.
Toshiro Vingança nos remete a um Hentai bestial, no qual a personagem entra em uma espécie de transe/mutação erótica anti-social: "Por cima figura estranha, um bicho mulher-aranha, mordeu na mulher as ancas, fluiu liquido laranja, (...) sentiu uma dor avante, seu pênis cuspiu um troço". Hentai em japonês significa 'anormal' e é ligado a tara e a perversão, mas sem conotação doentia. Toshiro ao despir-se "num só levante, num puta frio em São Paulo", nos leva à dignidade humana nas grandes cidades através do erotismo. O sexo como retorno ancestral e animalesco à natureza.
Toshiro reaparece em outra faixa, Toshiro Reverso, envolto de conteúdo onírico, próximo às animações de Hayao Miyazaki. É impossível não imaginarmos o ator Toshiro Mifune, que encarnou no cinema samurais grotescos, brutos e extremamente carismáticos, atuando nessas canções. Rodrigo usa Mifune como ator, como Akira Kurosawa fez tantas vezes. Inaugura-se uma nova categoria de personagens cancionais. Na medida em que é escolhido um ator como personagem de uma canção, ela pode encarnar múltiplas facetas. O mesmo ocorre quando Rodrigo evoca cineastas em faixas como Abraço de Ozu (Ozu Yasujiro), Takeshi e Asayo (Takeshi Kitano) e Wong Kar-Wai. As referências do Japão de Rodrigo são pop. Através do cinema, o autor tece uma colcha de retalhos e monta o seu mosaico, um processo muito parecido ao de Quentin Tarantino, como se sampleasse e reprocessasse cenas que seus olhos absorveram frente às telas. E isso não se limita ao cinema asiático, se amplia diante de tudo que Rodrigo assistiu, nos filmes e na vida.
Katsumi e Dois Sozinhos, esta última com letra de Nuno Ramos, apresentam uma espécie de erotismo lúdico, suas imagens nos remetem às gravuras japonesas Ukio-e (retratos do mundo flutuante) do período Edo. As duas canções se debruçam em imagens poéticas: "Katsumi é tão linda quanto borboleta, tão linda e dispersa feito borboleta, inda tem na virilha uma borboleta, Katsumi não tem pelos pubianos, já tem incompletos dezoito anos, (...) a questão é que tem uma borboleta, tattoo na virilha uma borboleta, voando tranquilo uma borboleta" (Katsumi); "Deixa eu gozar, tua mão é meu cão de caça, (...) minha carne é pra tua faca, só eu sei tua cor por dentro" (Dois Sozinhos).
Funatsu parece ter saído dos filmes de Nagisa Oshima ou Shohei Imamura, ao mesmo tempo que é o "rei covarde", desafia a humanidade "nas telhas, chutando as cancelas, das casas das velhas, da antiga cidade", com angústia: "metade de um homem, de um bicho, de algo encarnado", deboche: "albino da tromba amarela, cabeça vermelha, jorrando confete" e tabu: "comendo um menino de segunda à tarde".
O samba Chihiro parece aproximar musicalmente os dois primeiros trabalhos de Rodrigo. São Mateus (origem) e Bahia (ruptura) entram em confluência. Outro samba, Mar do Japão, leva às últimas consequências a abstração poética/geográfica, afirmando o que segundo Rodrigo habita nesse mar: 'água doce', 'pedra inteira', 'peixe morto', 'carro antigo', 'vidro', 'estrela'. Esse mar poderia ser o da Bahia, ou poderia existir em São Mateus.
Ao inventar novamente uma geografia pessoal, nos convencemos que Rodrigo Campos é um nômade em plena São Paulo, cidade cosmopolita que pode ser todos os lugares ou lugar nenhum. Rodrigo habita apenas seu próprio corpo e mapeia o mundo a partir das experiências humanas de suas personagens.